sexta-feira, 13 de novembro de 2009

Vovô e a Poesia

"Venha ver, querida! Olha o por-do-sol, que lindo! Corra! Me abrace e olhemos essa maravilha, que dura pouco. Daqui a pouco menos de uma hora, só veremos o manto da noite, pontilhado de estrelas. O Cruzeiro do Sul vai simbolizar o sacrifício em sua plenitude. As 3 Marias vão mostrar uma bonita configuração, um arranjo de estrelas que tem muito a ver com histórias que contam por aí, algumas das quais conhecemos tão bem. Quem sabe vejamos um cometa ou uma estrela cadente. Ela bem que poderia ser um símbolo de coisas que vivenciamos. Linda, emocionante, mas efêmera, fugaz. Vem, vamos olhar o céu, querida. Talvez, assim, por uma ironia do destino, estejamos olhando para nós mesmos..." Ao ler este texto, escrito de forma corrida e tosca, talvez por um lápis de ponta rombuda, letras tortuosas, palavras mal rabiscadas, tive a impressão que encontrara um pedaço da vida de vovô. Um homem hoje soturno, calado, que vive olhando para um ponto obscuro lá no passado, um passado remoto, mas cheio de histórias.
Estou só no sótão da velha casa. Vovô foi ao parque, sentar nos bancos com os outros aposentados. Dezenas deles, todos com o mesmo olhar apagado, olhando o infinito, sem ver as pessoas em volta. De vez em quando eles conversam. Mas é um ritmo que não conseguimos acompanhar. Lento. Sinuoso. Longos, extremamente longos os casos que contam. Mexo com os velhos livros e encontro um caderno relativamente novo. O que terá? Limpo a poeira da capa e abro - está sem uso. Ao folheá-lo, apenas algumas páginas no meio. As mesmas palavras tortuosas, tremidas, mas agora com esferográfica. Com certeza, foi ele quem escreveu. Não conhecia o lado literário de vovô. Doce conosco, sempre complacente, mas rude com os adultos e até mesmo com mamãe. Papai pouco conversava com ele. Apenas vi um ar diferente no olhar de vovô, no enterro de papai. Um acidente de carro e ficamos órfãos. De repente, o velhinho se aproximou mais e mais de nós. Depois que crescemos, isolou-se na velha casa e não mais nos procurou.
Eu e minha irmã sempre estamos por aqui, como quem não quer nada, só para tomar um pouco de conta de vovô. Ele não se incomoda e sempre nos recebe. Hoje, resolvi dar uma geral na fiação elétrica da casa. Mas o sótão me fascina. Nunca entrávamos aqui quando crianças. Vovô dizia ter um duende preso no sótão. Quem teria sido esse homem misterioso? Mamãe sempre disse que ele era carpinteiro. Mas qual carpinteiro teria um sentimento como o que vovô expressava em seus escritos? Talvez muitos. Talvez nenhum. E leio o texto do caderno:
"Mas que loucura, esta historia que lhe conto! Enviaram-me ao front. Batalhei destemidos inimigos dias, semanas, meses a fio. Voltei vitorioso dessa luta. Mas, espera...Escuta! Ainda há no ar os sons da luta. Que buscávamos nós, os bravos soldados? A que tipo de sonho estávamos atrelados? A que deram a vidaa golpes de baioneta, milhões e milhões de sóis que se apagaram? Quais os louros que eles conquistaram? Na guerra não há heróis, só loucos. A crueza da batalha pode nos enlouquecer de repente, mas também o pode aos poucos. A Europa ajoelhada ao fumo que restou entre ruínas. De sobra, órfãos, viúvas, eternas heroínas. Mas que loucura é essa? A dor, dilacerando a carne de jovens e o coração de mães, pais e filhos daqueles infelizes cuja recompensa se traduz, apenas e tão somente em branca e singela cruz..."
Terminei a leitura perplexo. Vovô teria ido à guerra? Aparentemente, sim. Ao lado do caderno, uma gaveta cheia de papéis. Num deles, desta vez amarelado pelo tempo mas datilografado, um novo texto. Seria também de vovô? Dizia assim:
"Tem um dia na vida da gente, em que a gente pensa que o mundo vai acabar. No dia seguinte, a gente descobre que tem de reconstruir o mundo pedrinha por pedrinha, de tudo aquilo que ficou esparramado, de tudo que foi destruído, de tudo que derrubado. A ordem é reconstruir. A ordem é recomeçar e recomeçar. Se isto não fosse verdade, por certo o mundo seria mesmo eterno. Ninguém morreria. O inverno não chegaria, o sol não nasceria e o rio não correria para o mar. A noite, escuro sem fim. O dia, clarão de matar. Por isso, entre um e outro, os dois irão se revezar. Assim também são o azar e a sorte. Assim também é a vida. Quanto mais sabemos da morte, mais amamos a alegria.
Quanto mais falta o pão, mais saboroso ele é, quando o temos à refeição. Quanto mais falta carinho, mais valor damos à afeição. Em cima. Embaixo. Direita. Esquerda. Grande. Pequeno. A antítese, vigor do existir, positivo e negativo causando a grande explosão. É o encontro do seu pouco-caso, com o amor do meu coração!"
É, vovô amou alguém que não lhe deu reciprocidade? Perguntar é besteira. Ele começa a contar uma historia e muda logo para outra, desconversando. Mas parece que houve algo de atravessado em tudo. Parece que minha irmã teve participação nessa história. Quase no final da tarde, depois de trocar uns fios velhos e desencapados por novos, encontrei mais uma raridade. Uma agenda do ano de 78. Dentro muitas anotações e um novo texto: "A plataforma da estação, esta amiga e velha conhecida, tem se comportado estranhamente. Veja, que ultimamente, o mato cresce no pátio de manobras. Os dormentes podres seguram velhos trilhos desbotados pelo sol e pela chuva. Quando olho para o céu, um azul profundo contrasta com a pureza das nuvens, num lento balé, como se elas zombassem da minha presença. Ao baixar os olhos, o que vejo? Da alegria dos castelos de nuvens e da luz do sol que reflete o meio-dia, um ar de abandono na velha estação: o limo já ocupou um pedaço da parede. No meio, a lousa avisa: Não há trens para baixo nem para cima. Onde foi parar o chefe? Os postes do telégrafo não tem mais fios. O chiar da caldeira deixou lugar para esse inquietante silêncio, quebrado apenas pelo vento, um chilrear de pardais no telhado e um ou outro arrulho de pombos a procurar seixos pelo pátio. O velho reservatório dágua ostenta uma mangueira podre, que oscila ao vento. Será que foi por aqui mesmo que cheguei a este lugar? Será que foi por aqui mesmo que partiram todos os meus sonhos, numa manhã molhada de janeiro, quando a chuva jogava gotas frias no meu rosto, misturando quentes lágrimas ao sal da despedida? Ah, o teu olhar... faíscas de um denso amor, cheio de promessas de um breve retornar, cheio de avisos de breve continuidade de uma bonita história de amor. Então, eu percebi que o destino, mais forte que tudo, mandava esperar. Hoje, na plataforma de embarque, olho para o infinito de um passado feliz. Mas aquele apito distante, avisando da volta da felicidade, é apenas um eco do trem que partiu.Quando sinto uma suave e pequenina mão a me tocar. Frágil, como me sentí todos esses anos. Um doce olhar, meigo e
terno, me faz voltar à realidade. E consinto. Retorno mesmo, a este velho mundo da realidade, ao ouvir: "vovô,vamos voltar para casa?`"
Evidente que era a minha irmã. Mas, quem seria essa paixão? Sabíamos que ele amava vovó. Depois que ela se foi, ele passou abatido um tempão. Para confirmar minha suspeita, encontrei um texto com o nome de vovó, muito provavelmente escrito pouco depois da morte dela. Dizia assim:
"Me desculpa senhorita, quero apenas lhe falar, que minha musa favorita, aquela que mais me inspira, foi pra nunca mais voltar. Perdoa se lhe aborreço, mas eu já paguei alto preço, prá essas coisas de amar. Amava o sol, amava a lua, amava a natureza, amava toda a beleza que podia enxergar. Mas um dia, de repente, o meu rosto se fez quente, era o pranto a rolar. E é isso mia mocinha, essa historia que é só minha, que eu tinha pra contar. Foi assim que o destino, disfarçado, traiçoeiro, pôs meus sonhos num bueiro - que não sei se foi a chuva ou meu pranto a derramar - arrastou pro alto mar e se perderam, foram embora, pra eu nunca mais sonhar..."
Depois de um banho rápido, saí correndo para o parque. De longe, vi vovô ainda sentado ao lado de um colega. Como uma criança, fui direto para o velhinho, meu doce
e querido vovô, ajoelhei-me ante ele, abracei-o ternamente e comecei a chorar. Ele não perguntou porque, apenas abrandou meu choro com um leve afagar nos meus cabelos. Ele não perguntou e eu também não disse. Nem era preciso...

terça-feira, 31 de maio de 2005

Porque a vida é assim...


Quando as pessoas querem acreditar em vc, seja vc uma verdade ou uma mentira, elas acreditam. E coisas maravilhosas passam a acontecer. Quando as pessoas não querem acreditar em vc, por normal ou mais perfeito que seja, até um santo, ou um Deus, vc sempre acabará no mínimo prejudicado e no máximo, dependurado numa cruz.